Em 1976, a Equipa de Física Nuclear do Grupo Experimental de Física deu Origem ao Centro de Física Nuclear da Universidade de Lisboa (CFNUL). Na madrugada do dia 18 de Março de 1978, a Faculdade de Ciências, na altura situada na rua da Escola Politécnica, no actual edifício do Museu de História Natural e da Ciência, foi atingida por um incêndio de grandes proporções, descrito na imprensa como uma "catástrofe científica e universitária". O CFNUL foi transferido para o edifício do então Instituto de Física Matemática (IFM), onde hoje são as instalações do LIP em Lisboa. Neste período, a liderar o Grupo de Electrónica e Instrumentação Nuclear do CFNUL, Gaspar empenhou-se no desenvolvimento de sistemas para análises de materiais com as técnicas de espectrometria de fluorescência de raios X (XRF, da sigla em inglês), emissão de raios X induzida por partículas (PIXE) e espectroscopia de Mossbauer.
A lista de publicações produzidas utilizando estas técnicas em contextos diversos é extensa, e pode encontrar-se nos slides (ao lado) apresentados na sessão de homenagem a Gaspar Barreira por Filomena Guerra, que chegou ao CFNUL como estudante em 1980 e partilhou o gabinete com Gaspar.
O seu grande interesse pela história, partilhado com Bragança Gil, levou-os, em particular, para aplicações pioneiras em Portugal na área da arqueologia. Foi celebrado um acordo de colaboração entre o CFNUL e o Centro de História da Universidade de Lisboa, e o trabalho deu frutos. "Conheci o Gaspar em âmbito profissional, porque, juntamente com o Professor Bragança Gil, desenvolvia investigação na área da arqueo-metalurgia, efectuando análises de artefactos metálicos pré e proto-históricos", conta Ana Margarida Arruda, amiga e investigadora do Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa. "Assim, o meu primeiro artigo publicado em revista científica, datado de 1980, foi assinado em colaboração com ambos, e ainda com Victor Gonçalves, arqueólogo, professor da arqueologia na Faculdade de Letras e também meu marido". Ao longo dos anos seguintes, são muitos os relatos de como o Gaspar "salvava" os colegas com a sua capacidade de fazer as coisas funcionar, consertando equipamento ou montando módulos que não existiam. Ana Noronha diz dever-lhe um analisador multicanal de que necessitava para o seu trabalho de investigação. Amélia Maio, um gerador de impulsos rápidos (nano-segundos) que Gaspar construiu em colaboração com Sousa Lopes.
Gaspar tinha, desde sempre, o impulso de falar de ciência para os não cientistas, e de pôr a ciência ao serviço do desenvolvimento do país. Aquando do 1º Encontro Nacional de Física, organizado pela Sociedade Portuguesa de Física (SPF) em 1978, foi publicada na Gazeta de Física, a revista da SPF, a análise com raios X, realizada no CFNUL, da medalha comemorativa do encontro, em que figurava um astrolábio e uma ampola de raios X. Em 1979, Gaspar desenvolveu um sistema de detecção de muões para a participação do CFNUL na primeira edição do ENDIEL — Encontro para o Desenvolvimento do Sector Eléctrico e Electrónico. O ENDIEL foi organizado (de dois em dois anos entre 1979 até 2015) pela ANIMEE — Associação Portuguesa das Empresas do Sector Eléctrico e Electrónico, que viria a ser um dos associados do LIP. Em 1980, regressada do doutoramento na Bélgica, Amélia Maio começou a planear uma experiência para a medida da massa do neutrino "usando técnicas de física atómica e nuclear, e também o efeito de Mossbauer". Teve um grande apoio de Vilela Mendes, e também o apoio técnico, e o enorme entusiasmo, do Gaspar. Havia na altura actividades de física de partículas organizadas entre a FCUL (nomeadamente com Augusto Barroso) e o IST (com José Mariano Gago), em que as pessoas se encontravam. Amélia foi convidada para apresentar o projecto, que interessava ao jovem grupo de partículas (que viria a reunir-se no LIP). "O Gaspar falou mais do que eu", conta, "todos os amigos sabem que quando ele se entusiasmava isso acontecia".
Por essa altura, Augusto Barroso teve a iniciativa de propor Gaspar para professor auxiliar convidado da FCUL. Com a ajuda de alguns colegas do CFNUL, em particular Amélia Maio e Conceição Abreu, recolheu as assinaturas de todos os catedráticos de todos os departamentos da FCUL. Apenas Sousa Lopes, da área de instrumentação e electrónica, não assinou. O pedido foi aceite, mas Gaspar recusou o lugar. Naquele início da década de 1980, o caminho levou Gaspar Barreira ao Centro Internacional de Física Teórica (ICTP), em Trieste. O ICTP tinha um acordo de cooperação com o CFNUL. "Nessa altura, ainda éramos país em vias de desenvolvimento", explica Amélia Maio. Gaspar Barreira começou por ir a uma escola no ICTP, onde se deve ter destacado. Assim começou a colaboração. Em pouco tempo, tornou-se director do Laboratório de Microprocessadores e organizador da "ICTP-CERN Series of Colleges on Microprocessors", em que também dava aulas, e que o fez correr mundo: Trieste (1981 e 1983), Colombo, Sri-Lanka (1984), Bogotá e Lisboa (1985), Hefei, China (1986). Em 1985, os colegas do CFNUL recordam a chegada a Lisboa de uma grande quantidade de equipamento proveniente de Trieste e de Genebra: terminais, placas de electrónica, cabos, ferramentas. Gaspar poderia ter ficado por Trieste, prosseguindo uma carreira em rápida ascensão. Mas há desafios a que nunca diria não.
“O Gaspar tinha muitos sonhos, e muitos deles realizaram-se. Mas o Gaspar também acreditava nos
sonhos dos outros, e lutava para os realizar”.
Filomena Guerra
“Como todos os amigos do Gaspar sabem, os seus interesses eram muitos e variados. E a sua imensa e
diversificada cultura, também humanística, permitia conversas longas, sobre temáticas múltiplas (os
cavalos que encimam a basílica de São Marcos em Veneza, os ginkgo bilobas, as castas de vinho franceses,
os cogumelos da Serra de Grândola, as raças de canídeos e a sua “Talpa”, os babás napolitanos,...), quase
sempre diante de um copo de vinho tinto e de algum petisco, em minha casa, em Lisboa, ou na sua, então em
Paço de Arcos, sempre acompanhados pelo Victor e pela Gianna. O Gaspar foi um homem bom e de bem,
inteiro e íntegro. Generoso, brilhante e culto. Foi um privilégio ter podido usufruir da sua companhia e
ter contado com a sua amizade.”
A.M. Arruda
"Na manhã de 25 de Abril de 1974, apesar de dizerem para as pessoas ficarem em casa, decidi fazer o meu habitual percurso a pé para a faculdade. Se me parassem, dizia que não sabia de nada e estava a ir trabalhar. Eu morava na Estrela, desci para S. Bento mas fiquei desiludida porque não estava lá ninguém. Depois subi para a rua da Escola Politécnica. Quando cheguei, só lá estavam o Bragança Gil e o Gaspar, que tinha levado um radiozinho. Quando começaram os acontecimentos no largo do Carmo o Gaspar foi para lá. A seguir ao 25 de Abril, quando as coisas começaram a ficar mais quentes politicamente, o Gaspar desapareceu durante um tempo."
A. Maio (ex-coordenadora do grupo ATLAS-LIP)
"(...) Devido à sua inteligência, engenho e cultura vivemos bons e inspirados momentos. O Professor Bragança Gil, um destemido, acolheu o Gaspar no Grupo em 1972 onde até ao 25 de Abril ele tudo fazia da electrónica à física (...). Quando resolvia os problemas dava sempre a essa solução um contributo inesperado e inovador."
C. Abreu (Presidente da Sociedade Portuguesa de Física)
"Conheci-o em 1984 no ICTP em Trieste, durante a escola de microprocessadores onde os dois éramos professores. O curso foi replicado muitas vezes em todo o mundo. A nossa amizade cresceu maravilhosamente e tive muitas ocasiões para trabalhar com ele noutros projetos e desfrutar de sua calorosa hospitalidade, em Lisboa e no Algarve, juntamente com Gianna e Talpa".
Francesco Ragusa
Testemunho
Ana Margarida Arruda
(amiga, UNIARQ - Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa)
Conheci o Gaspar na segunda metade dos anos 70 do século passado. Dependia ainda administrativamente do Conselho da Revolução, dada a sua condição de membro da Comissão de Extinção da PIDE/DGS, mas já exercia funções no Centro de Física Nuclear das Universidade de Lisboa, alojado, justa e, atrevo-me a dizer, premonitoriamente, nas actuais instalações do LIP, a instituição que fundou e sempre acarinhou.
Outros, melhor do que eu, falarão da sua acção no domínio concreto das actividades políticas desenvolvidas durante o Estado Novo, especificamente da prisão no forte de Peniche e em Caxias. Por isso refiro apenas de passagem as histórias que contava, como por exemplo a do encontro, imediatamente após a Revolução de Abril, então em lados opostos da mesa, com o esbirro que o tinha torturado anos antes e de como se impressionou com a forma como este se humilhava e implorava. Mais significativa, porque definidora do carácter do Gaspar, foi o rádio, comprado a sua própria custa, que ofereceu ao mesmo pide, meses mais tarde, porque este se queixava da claustrofobia que sentia na cela. A empatia mútua inicial transformou-se, à custa de estas e de outras histórias, numa amizade forte e duradoura, que nunca se perdeu, apesar de algum afastamento que os nossos percursos profissionais e pessoais acabaram, de alguma forma, por impor. Um afastamento de que, felizmente, recuperamos nos últimos 10 anos.